<i>Reflexões de Abril<br>– A guerra colonial na literatura</i>

Domingos Lobo

A li­te­ra­tura que tem o con­flito ar­mado nas ex-co­ló­nias como ele­mento fic­ci­onal, trans­formou, sem rup­turas ge­ra­ci­o­nais abruptas, a raiz fe­no­me­no­ló­gica, in­ter­ven­tiva e crí­tica do neo-re­a­lismo da pri­meira ge­ração, abrindo ca­minho para um re­a­lismo de tipo novo, épico e for­te­mente psi­co­ló­gico. A li­te­ra­tura que fic­ciona a guerra re­cu­pera o sub­jec­ti­vismo, o dis­curso in­ti­mista e in­di­vi­du­a­li­zado, jun­tando-lhe ele­mentos dis­cur­sivos do nou­veau roman e do es­tru­tu­ra­lismo, sem des­corar a aná­lise po­lí­tica dessa re­a­li­dade. Os au­tores me­lhor ape­tre­chados leram Barthes, Saus­sure, Walter Ben­jamin, Kris­teva, Freud, be­beram na an­gústia ca­mu­siana e no exis­ten­ci­a­lismo li­ber­tário de Sartre.

Os au­tores que me­lhor trans­por­taram para as ma­lhas da ficção essa ex­pe­ri­ência, e no-la re­ve­laram, vi­veram, com pouco mais de 20 anos, o con­flito, es­ti­veram no centro da acção, co­nhe­ceram a an­gústia, o medo, as atro­ci­dades e o ar­bí­trio, fa­laram de perto com a morte, es­ti­veram no cerne dos pe­sa­delos que a guerra ori­gina e trans­porta. Dessa ex­pe­ri­ência sou­beram dar tes­te­munho, fa­zendo-o quase sempre de forma ino­va­dora, cons­truindo uma nova fala, uma se­mân­tica des­co­nhe­cida e mais ágil a uma li­te­ra­tura ex­pec­tante e vi­giada. Como o comum dos sol­dados, par­tiram para a frente de com­bate com es­casso e frágil co­nhe­ci­mento dos me­ca­nismos bé­licos, des­pro­te­gidos face aos enigmas do con­flito. É a guerra que os forma e é a guerra, com todo o seu cor­tejo de mi­sé­rias, trai­ções e ge­ne­ro­si­dades, que os leva à es­crita – num pri­mário im­pulso de in­dig­nação e de re­volta, num de­pu­rado exer­cício crí­tico, de­pois, cri­ando uma es­crita que re­nova um certo dis­curso an­ci­lo­sado, su­plan­tando o medo, no dizer de Júlio Con­rado.

Estes textos são de de­núncia e de con­fronto, face ao es­tupor que ex­pressam. Não tenho co­nhe­ci­mento de que a ca­tarse in­di­vi­dual, a ex­po­sição afir­ma­tiva, que esta es­crita re­pre­senta ti­vesse trans­crição, em termos fic­ci­o­nais, nou­tras li­te­ra­turas que ar­qui­tec­taram a guerra e os fe­nó­menos a ela li­gados como ele­mento pri­mor­dial de re­flexão nar­ra­tiva. Em­bora existam al­gumas cor­res­pon­dên­cias na li­te­ra­tura alemã da 2ª. Guerra Mun­dial (Günter Grass mas, so­bre­tudo, Hein­rich Böll) e na dos EUA pós Vi­et­name – ambas, no en­tanto, o fazem sobre a pers­pec­tiva dos ven­cidos, en­quanto a nossa, a me­lhor que pra­ti­cámos, se de­sen­volve numa visão de­mo­crá­tica, em opo­sição clara e frontal aos pres­su­postos do con­flito; do opressor que en­quanto tal se ques­tiona to­mando par­tido pelos povos que ajudou a oprimir: é, desse modo, uma li­te­ra­tura que nos ques­tiona, que se po­si­ciona, em sen­tido di­a­léc­tico, do lado pro­gres­sista da his­tória. Não existe, no nú­cleo cen­tral da li­te­ra­tura por­tu­guesa da guerra, uma con­cepção co­lo­nial fe­rida (a der­rota do na­zismo, que du­raria mil anos, no caso alemão; a fa­lência da im­po­sição do sonho do im­pério, no caso ianque), mas a re­jeição li­minar do ab­surdo da guerra e da sua de­núncia. Há pois, entre a nossa li­te­ra­tura de guerra e as duas re­fe­ridas, di­fe­renças con­cep­tuais sig­ni­fi­ca­tivas que ori­gi­naram di­nâ­micas nar­ra­tivas e ima­gi­ná­rios di­versos. Mas também uma ampla con­tex­tu­a­li­zação, a partir de ele­mentos au­to­bi­o­grá­ficos, do con­flito, que per­mitiu in­tro­duzir na di­e­gese uma di­mensão pe­da­gó­gica e di­a­léc­tica e uma de­ter­mi­nante in­ter­venção no dis­curso do nar­rador/​pro­ta­go­nista, do autor/​per­so­nagem; ca­pa­ci­dade de fic­ci­onar o real, de de­núncia, de re­flectir (mesmo nos ex­cessos emo­tivos) sobre ele­mentos fac­tuais.

A li­te­ra­tura da Guerra Co­lo­nial, ao mesmo tempo que exor­ciza os medos, cons­trói uma es­crita de co­ragem – o as­sumir dos fan­tasmas, das fe­ridas e da culpa que lhe estão no cerne –, ele­gendo o su­jeito, en­quanto agente de uma de­ter­mi­nada re­a­li­dade e da sua efa­bu­lação; con­tri­buindo desta forma, pelo li­ber­tário que a en­forma, para a nossa aber­tura ao mundo: há uma com­po­nente hu­ma­nista (no sen­tido hei­deg­ge­riano) uni­versal nestes textos que é, na sua pro­po­sição, um traço de­ter­mi­nante de afir­mação e mo­der­ni­dade.

Se o acto de es­crever é um acto de res­pon­sa­bi­li­zação – cul­tural, cí­vica e ética, os au­tores que vi­eram da guerra e a es­cre­veram atin­giram, quase sempre, esse es­tágio su­premo da cri­ação li­te­rária. Outro dos ele­mentos que a li­te­ra­tura sobre a guerra in­troduz no dis­curso fic­ci­onal é o da sin­ce­ri­dade: sin­ce­ri­dade emo­ci­onal, ide­o­ló­gica, afec­tiva, se­xual. Aliás, a se­xu­a­li­dade é um dos temas sobre o qual al­guns au­tores não es­ca­mo­te­aram re­fe­rên­cias, in­cluindo nos seus textos des­cri­ções a prá­ticas tidas como mar­gi­nais.

Ra­ra­mente a li­te­ra­tura por­tu­guesa deu a di­mensão trá­gica, o ab­so­luto do drama, o épico, como nos textos em que a Guerra Co­lo­nial surge como su­porte fic­ci­onal. É a tra­gédia do homem só (mesmo quando en­vol­vido co­lec­ti­va­mente) com sua cons­ci­ência, com o seu sen­tido do dever e da jus­tiça – o homem e seus con­flitos, em es­tado puro: esse fe­nó­meno nunca antes a li­te­ra­tura por­tu­guesa con­se­guira tra­duzir tão ri­go­ro­sa­mente. Bastam-nos umas de­zenas de obras – al­gumas, es­treias no­tá­veis dos seus au­tores – para provar que foi de­ci­sivo esse con­tri­buto para a rein­venção de um olhar novo e di­fe­rente, sobre um dos pe­ríodos mais dra­má­ticos da re­a­li­dade por­tu­guesa dos anos 1961/​74, olhar que só a Li­ber­dade con­quis­tada em Abril per­mitiu re­velar ple­na­mente:

O Ca­pitão Nemo e Eu e Os Mas­tins, de Álvaro Guerra; His­tória do Sol­dado que Não foi Con­de­co­rado e Ir à Guerra, de Mo­desto Na­varro; Lugar de Mas­sacre, de José Mar­tins Garcia; Me­mória de Ele­fante, de An­tónio Lobo An­tunes; Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz; Au­tópsia de um Mar de Ruínas, de João de Melo; Sa­lário de Guerra, de Ver­gílio Al­berto Vi­eira; Os Três Na­tais, de José Cor­reia Ta­vares; A Es­pe­rança Agre­dida e Ombro Arma, de José Ma­nuel Mendes; Me­mória de Cão, de Álamo Oli­veira; A Costa dos Mur­mú­rios, de Lídia Jorge; Per­cursos (do Lu­a­chimo ao Luena), de Wanda Ramos; Diário Pu­eril da Guerra, de Sérgio de Sousa; Os Na­vios Ne­greiros Não Sobem o Cu­ando, de Do­mingos Lobo, Uma Noite na Guerra, de Carlos Cou­tinho e No Per­curso de Guerras Co­lo­niais, de Mário Pádua.

Uma mão cheia de tí­tulos (entre mais de 200 até hoje pu­bli­cados), que provam como a Guerra Co­lo­nial con­se­guiu mo­bi­lizar tantos (e tão im­por­tantes) au­tores, le­vando-os à cons­trução de uma es­crita ar­guta, re­belde, por vezes in­génua, ex­trema, ar­ris­cando, nos li­mites, o salto para a des­co­berta re­den­tora do outro e dos con­flitos in­ternos que lhe deram origem, im­pondo a esses textos uma visão di­a­léc­tica, ope­rada fic­ci­o­nal­mente sobre as fe­ridas desse tempo his­tó­rico.




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